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Artigos 24/07/23

Necessidade de uniformização sobre possibilidade de penhora de bem gravado

Antes de aprofundar sobre o tema discutido neste artigo, é importante esclarecer que a Lei nº 9.514/1997, que disciplina a alienação fiduciária de bem imóvel, veio para suprir uma importante lacuna do sistema de garantias reais do direito brasileiro, principalmente no mercado de crédito imobiliário, deliberando prazos mais compatíveis e céleres à execução da garantia real, além de fornecer maior segurança ao credor (fiduciante), com vistas a baratear essa modalidade de crédito.

Ora, tendo o credor maior segurança jurídica acerca da garantia e recuperação do crédito concedido, naturalmente as taxas de juros tendem a ser menores, porque virtualmente o risco de inadimplemento é menor.

A alienação fiduciária é um tipo garantia real por meio da qual o devedor (fiduciante) transfere a propriedade resolúvel de um bem, móvel ou imóvel, ao credor (fiduciante), a fim de garantir o pagamento da obrigação por ela garantida.

Na Alienação fiduciária de bem imóvel, o devedor cede a propriedade resolúvel de um bem imóvel ao credor, mediante o registro no competente Registro de Imóveis, como garantia de que efetivamente irá honrar sua obrigação e quitar a dívida, sob condição resolúvel expressa.

Como dito no início do texto, tal modalidade de garantia real foi criada para fomentar o mercado de crédito imobiliário brasileiro e estimular a concessão de crédito imobiliário com taxas de juros menores que a de outros tipos de créditos, e tem se demonstrado nesses quase 26 anos da existência da Lei nº 9.514/1997, um mecanismo que estabelece maior segurança e eficácia para os credores, se comparada a outros tipos garantias, reais inclusive, dada a celeridade com que é executada extrajudicialmente.

Além disso, em razão de a propriedade resolúvel, até que quitado o débito garantido, pertencer ao credor e não ao devedor, vinha sendo um obstáculo a que outros eventuais credores desse devedor avançassem sobre o imóvel para a satisfação de seus débitos, uma vez que se entendia até a quitação total, o devedor somente possuía uma expectativa de direito (direitos aquisitivos), qual seja, a de receber “de volta” a propriedade do bem imóvel após a total quitação da dívida garantida.

Até, então, tal quitação, no máximo o devedor possuiria direito ao saldo aferido em eventual leilão do imóvel para saldar o débito garantido e, pois, apenas esse saldo, se existente, é que poderia ser penhorado para o pagamento de outros débitos alheios à dívida garantida pela alienação fiduciária.

Porém, em recente julgado do REsp 2.059.278/SC, por maioria dos votos, a 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, decidiu que eventuais débitos condominiais relativos ao imóvel alienado fiduciariamente prevaleceriam inclusive ao crédito garantido pela alienação fiduciária, entendendo como possível a penhora de imóvel gravado com alienação fiduciária, em execução de despesas condominiais de responsabilidade do devedor fiduciante, e não apenas dos direitos aquisitivos do contrato com alienação fiduciária em garantia.

A decisão estabelece um marco inédito, e pode se dizer, histórico, visto que, até então, a Corte Superior vinha se posicionando em sentido contrário ao entendimento ora adotado pela 4ª Turma, pois costumeiramente era decretada a impenhorabilidade de imóveis gravados com alienação fiduciária, ainda que se tratasse de execuções fundadas em débitos condominiais.

Fato é que o novo entendimento privilegia a preferência dos débitos condominiais em face da garantia real do credor fiduciário, já que, de acordo com os Ministros que votaram pelo provimento do recurso, não seria possível admitir a suspensão do caráter propter rem da obrigação durante a vigência do contrato garantido por alienação fiduciária em detrimento da coletividade do condomínio.

Caso a jurisprudência do STJ seja consolidada nesse sentido, de modo a ser replicada pelas instâncias inferiores, certamente ocasionará mudanças relevantes no setor imobiliário, especialmente no setor de crédito imobiliário, haja vista que mesmo estando alienado fiduciariamente o bem, existirá a possibilidade real da penhora do imóvel gravado com a garantia real, e não apenas dos direitos aquisitivos do contrato com alienação fiduciária, sendo o imóvel levado à hasta pública para satisfazer primeiro a dívida existente com o condomínio e depois o débito garantido pela alienação fiduciária.

Como há na 3ª Turma do STJ, por enquanto, uma posição oposta sobre a matéria, salutar seria se a Corte Especial se debruçasse sobre o tema para uniformizar o entendimento daquele Tribunal Superior, quer seja pela possibilidade de penhora do imóvel, que seja por sua impenhorabilidade, uma vez que tal uniformização certamente afetará a vida de milhões de brasileiros que desejam adquirir seu imóvel mediante a modalidade de crédito imobiliário garantido por alienação fiduciária, dado o potencial de modificar o cálculo atuarial desse tipo de financiamento para a fixação de suas taxas de juros.

Essa potencial modificação não é hipotética, mas bastante real, porque, imagine-se que se fixada a tese da prevalência dos débitos condominiais sobre o débito garantido, deverão os credores passar a exigir de seus devedores a comprovação periódica da quitação dos débitos condominiais, para não serem surpreendidos com o pedido de penhora de imóveis alienados fiduciariamente, o que gerará mais insegurança e mais custos para essa modalidade de crédito.

Doutro lado, realmente as obrigações condominiais têm natureza propter rem, não perdendo tal natureza apenas por se encontrar o imóvel alienado fiduciariamente, e deve responder pela satisfação dessas obrigações, até para que os demais condôminos não sejam onerados injustamente.

Argumentos há para ambos os lados.

De qualquer maneira, o mais importante é haver uma previsibilidade, a tal segurança jurídica que o Brasil ainda infelizmente peca em prover à sociedade e ao ambiente de negócios, e por isso urge a uniformização de jurisprudência do STJ acerca do tema, para que as instâncias inferiores possam ter um norte firme para se guiar.

Por Maurício Elias Filho e Felipe Araujo