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Artigos 09/10/24

A usucapião e o direito real de habitação no novo código civil

  1. INTRODUÇÃO

 

Como é de conhecimento público, infelizmente mais dentro dos grupos de juristas do que na sociedade em civil em geral, o Senado recebeu no último dia 17 de abril o anteprojeto do novo Código Civil, elaborado por uma comissão de juristas então presidida pelo Ministro do Superior Tribunal de Justiça – STJ, Luis Felipe Salomão, em entrega realizada durante sessão no Plenário. Nessa seara, a proposta encontra-se sob análise dos senadores, ficando pendente de protocolo e apresentação, como projeto de lei, pelo presidente do Senado.

 

Assim sendo, o presente artigo tem por objeto a análise antecipada, mas objetiva, das propostas modificativas inclusas no texto do anteprojeto, mas não possui a pretensão futurológica de confirmar que serão todas aprovadas e posteriormente sancionadas pelo Presidente da República Federativa do Brasil, e menos ainda de abarcar toda a profundidade de um simpósio acadêmico, tentando tão somente trazer os principais pontos, para lhe dar uma visão ampla dos temas selecionados.

 

Não obstante, cuidaremos de tratar brevemente dos possíveis impactos do anteprojeto no âmbito do direito imobiliário, discutindo as perspectivas que se avizinham para a usucapião, em suas diferentes vias, e para o direito real de habitação.

 

Desta feita, como é certo que o anteprojeto será bombardeado por alterações, estaremos considerando aqui o material disponibilizado no portal do Senado Federal[1], que pode ser adotado como referência na sua leitura, o que blinda o presente material de se encontrar, como o Código Civil de 2002, desatualizado.

 

  1. DA USUCAPIÃO

 

O primeiro ponto que acreditamos que valha ser abordado, em linhas gerais, diz respeito à usucapião, que aqui será abordada pontualmente em diversas modalidades e para diversas finalidades.

 

Dentre aqueles atuantes no mercado ou no direito imobiliário, é patente que o justo esforço pela extrajudicialização, ainda que bastante longe de se achegar aos problemas enraizados no Direito Brasileiro e na própria formação da sociedade brasileira, trouxe benefícios no campo da usucapião. Deixamos de percorrer longuíssimos caminhos judiciais para tratar diretamente com profissionais competentes na balança entre a posse e a propriedade: os Cartórios de Registro de Imóveis.

 

Aqui estamos falando, é claro, do Código de Processo Civil, da Lei nº 13.105/2015 (“Código de Processo Civil”) e de seus impactos positivos na Lei nº 6.015/73 (“Lei de Registros Públicos”), e da pavimentação de uma via expressa para o antigo tráfego pesado que rodeava o tema da usucapião, partindo do artigo 1.238 do Código Civil de 2002. Ver um direito de propriedade homologado na matrícula do imóvel usucapiendo em um ano e não mais em vários, e sem custas judiciais – não que os emolumentos extrajudiciais estejam exatamente acessíveis, mas enfim -, são avanços consideravelmente válidos.

 

Nesse mesmo sentido, é importante que haja uma aderência assídua sobre o movimento da desjudicialização, para que, considerando que os procedimentos extrajudiciais, em regra, não são abarcados pela proteção aos hipossuficientes, tais como os benefício da justiça gratuita prevista no Código de Processo Civil, haja manifestação dos órgãos legislativos e/ou regulatórios da expressa previsão de que os benefícios da justiça gratuita possam atingir os procedimentos puramente extrajudiciais e não como consta na previsão do Código de Processo Civil, ao qual indica que somente os atos notariais e/ou registais sejam gratuitos para efetivação de decisão judicial ou à continuidade de processo judicial no qual o benefício tenha sido concedido.

 

O anteprojeto, é claro, não deixaria essa pequena joia de fora do conceito de uma nova coroa para o Direito Civil Brasileiro. Está lá, no § 2º do art. 1.238: Servirá de título para o registro no Cartório de Registro de Imóveis, tanto a sentença que declarar a aquisição por usucapião, como a nota fundamentada de deferimento extrajudicial de usucapião.

 

É claro que essa, talvez, seja uma das novidades menos inéditas do anteprojeto do Código Civil, na acepção mais pura do “engenheiro de obra-pronta”.

 

Muito mais pertinente é a alteração sugerida no artigo vizinho: o de número 1.239, que trata da usucapião rural. A redação atual do mencionado artigo preceitua que “Aquele que, não sendo proprietário de imóvel rural ou urbano, possua como sua, por cinco anos ininterruptos, sem oposição, área de terra em zona rural não superior a cinqüenta hectares, tornando-a produtiva por seu trabalho ou de sua família, tendo nela sua moradia, adquirir-lhe-á a propriedade”, parece bastante desguarnecida a respeito da grilagem de terras, que hoje possui uma estrutura consolidada.

 

O anteprojeto, por sua vez, propõe a limitação ao direito previsto no caput, acima transcrito, para que só possa ser exercido uma única vez pelo mesmo possuidor, de forma a limitar a sistematização do exercício da usucapião rural de forma indevida, permitindo a um mesmo possuidor a aquisição de propriedades de forma indiscriminada. É claro que continua sendo ineficaz, como qualquer texto de lei, sem a devida fiscalização, pois grileiros poderão utilizar “laranjas” como quaisquer outros agentes criminosos, mas estabelece um crivo a mais, uma barreira a mais que poderá ser levantada em procedimentos de impugnação à prática.

 

Nesse mesmo âmbito usucapiendo, o anteprojeto traz breves modernizações, necessárias, ainda que simbólicas. A usucapião urbana, do art. 1.240, que hoje traz um § 1º do século passado, descrevendo que o título de domínio e concessão de uso serão conferidos “ao homem ou à mulher, ou a ambos, independentemente do estado civil”, trará um novo § 1º, que se refere à “pessoa, independentemente de sexo, gênero ou estado civil”.

 

Por fim, o art. 1.240-A, que trata da usucapião familiar, hoje possuindo um texto absurdamente enxuto, que não descreve com precisão os prazos ou conceitos atinentes a essa modalidade de grande importância, ainda que seja um dos instrumentos que melhor pode alcançar e de alguma forma remediar o abandono familiar – no geral, paternal -, passaria por alguns acréscimos, passando a ter o seu prazo de 2 (dois) anos contados do fim da composse existente entre os ex-cônjuges ou os ex-conviventes, sendo essa entendida como deixar de arcar com as despesas relativas ao imóvel, privilegiando a situação fática da separação, independentemente de divórcio ou dissolução da união estável.

 

Esse é um claro avanço, uma vez que os instrumentos do casamento e da união estável poderiam ser utilizados como uma base argumentativa injusta, na proteção de cônjuges ou conviventes que, deixando de prover em relação ao imóvel, manter-se-iam como proprietários, ainda que não possuam a posse com intenção de dono.

 

O texto do anteprojeto, ainda, propõe uma interpretação para o conceito do abandono do lar, sugerindo que o mesmo não dependa de uma averiguação de culpa pelo fim da sociedade conjugal, do casamento ou da união estável, em uma tentativa de impedir que o Judiciário seja mais uma vez sobrecarregado com defesas protelatórias e conflitos que não necessariamente estejam relacionadas ao direito, bem como que tais argumentos de defesa barrem a tramitação do procedimento junto ao Cartório de Registro de Imóveis, possivelmente beneficiando e protegendo uma grande parcela de mulheres brasileiras que sustentam o lar por conta própria, após o êxodo marital.  Apenas para se ter uma base, o Boletim Especial 8 de março, do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese), revelou que no censo de 2022, dos 75 milhões de lares, 50,8% eram chefiados por mulheres, o que corresponde a 38,1 milhões de lares.

 

 

  1. DO DIREITO REAL DE HABITAÇÃO

 

Aproveitando o gancho familiar, tratamos brevemente do direito real de habitação, contemplado pelo atual Código Civil no art. 1.831, que preceitua que ao cônjuge sobrevivente, quando do falecimento do outro, seja qual for o regime de bens pelo qual eram casados, está assegurado, sem prejuízo da participação que lhe caiba na herança, o direito real de habitação sobre o imóvel destinado à residência da família, desde eu seja o único daquela natureza a inventariar.

 

O anteprojeto, além de adicionar a figura da união estável no âmbito dessa garantia, impõe duas novidades a esse respeito: o mesmo direito real de habitação será assegurado também aos descendentes incapazes ou com deficiência, bem como aos ascendentes vulneráveis que viviam com o casal ao tempo da morte do convivente ou do cônjuge e, não só isso, como também impõe uma limitação a qualquer um dos titulares do direito de habitação que comprovadamente possuir renda ou patrimônio suficiente para manter sua respectiva moradia.

 

É claro que esse é um tema também muito ligado ao Direto de Família, mas os impactos no Direito Imobiliário podem ser bastante curiosos, tanto pelo conceito proposto pelo anteprojeto, no que se refere ao convívio entre descendentes e ascendentes e, possivelmente, um cônjuge ou convivente do “outro lado”, quanto pela limitação financeira, que nos parece razoável, visto que, de outra forma, os descendentes sempre estariam limitados por um direito real de habitação desnecessariamente garantido.

 

Outro tema que certamente será objeto de discussão, em caso de aprovação e sanção da proposta de alteração do direito real de habitação, nos quesitos supramencionados, será com relação à vigência dele quanto aos casamentos e uniões estáveis em curso. Para deixar um palpite, é bastante possível que o novo regramento se aplique aos casamentos e uniões estáveis independentemente do momento em que foram contraídos, uma vez que a legislação brasileira tem por princípio a proteção de direitos adquiridos – ou seja, em exercício – e não de expectativas de direito.

 

  1. CONCLUSÃO

 

Nesse sentido, compreendemos, em linhas gerais, que o anteprojeto do Código Civil apresentado ao Senado terá por condão não só uma singela modernização de conceitos, mas também a possibilidade de lastrear garantias a bens jurídicos que são e deveriam ser ainda mais caros à sociedade brasileira.

 

É uma chance única de encurtar procedimentos e trazer justiça de forma menos tardia, com alguma sorte direcionando os olhos da classe jurídica para temáticas que, por vezes, são ignoradas na nossa busca constante, singular e talvez inócua de mero crescimento econômico.

 

Novos caminhos para o exercício civil.

 

[1] https://www12.senado.leg.br/assessoria-de-imprensa/arquivos/anteprojeto-codigo-civil-comissao-de-juristas-2023_2024.pdf